Silvia Mecozzi
Setembro de 2022
Solange Farkas
Diretora Museu de arte Moderna da Bahia Outubro de 2009
Anna Veronica Mautner
Outubro de 2016
Silvia Mecozzi
Outubro de 2016
Yuri Fomin Quevedo
Agosto de 2013
Silvia Mecozzi
work in progress
Franklin Espath Pedroso
Agosto de 1998
Angélica de Moraes
Maio de 2005
Silvia Mecozzi
work in progress
Silvia Mecozzi
Abril de 2015
Silvia Mecozzi
work in progress
Katia Canton
PhD em Artes Interdisciplinares pela Universidade de Nova York, livre-docente pela ECA USP. É docente e curadora do MAC USP.
Alessandra Parente
Eder Chiodetto
silvia mecozzi - um comentário em duas partes
Katia Canton
PhD em Artes Interdisciplinares pela Universidade de Nova York, livre-docente pela ECA USP.
É docente e curadora do MAC USP.
I. DESAPEGAR-SE DAS HISTÓRIAS
“As coisas me ampliaram para menos” (Manoel de Barros)
O rosto da menina de cabelos compridos, repetido inúmeras vezes como um pano de fundo para caixas de imagens construídas com linhas gestuais cravadas no buril, e os fragmentos das paisagens figurativas, composições despretensiosas, emblemáticas da geração da Família Artística Paulista, a que se ligou o pintor Vicente Mecozzi, referem-se, ambos, a um momento preciso e potente na carreira da artista. Durante um período a obra de Silvia Mecozzi incorporou e foi juntando pedaços de sua memória pessoal. Nas caixas-gravuras-poemas, nas construções que ela criava, surgiam imagens de pinturas paternas e fotos da infância relembrando a garota que perdeu o pai com oito anos de idade.
A artista tomou posse de fotos do álbum familiar e misturou as imagens captadas nele, mesclando-as com uma infinidade de matérias e de ações, faturas construídas a partir de ranhuras em placas acrílicas, entintamentos, sulcos, raspagens. Essas ações, carregadas de força e corporeidade, operavam no trabalho como um sistema de apagamento da memória. Pareciam atos que buscavam depurar um passado. Curá-lo.
A apropriação da herança familiar ajudou a artista a localizar-se na criação de um corpo de obra. Placas transparentes de acrílico ganham aspecto translúcido, vão sendo encobertas por intrigantes veladuras. Textos se esboçam sobre as imagens familiares, tornam-se pequenos poemas costurados em torno das figuras e das não-figuras, manipuladas como se fossem ruínas.
Os aspectos da intimidade pessoal ajudam a deixar a história emergir, alagar-se, maturar. E depois, a passar.
Esse processo de abstração foi acontecendo no tempo, no percurso cotidiano de fabricar corpos no espaço. Com suas chapas de acrílico, seus tubos e canos plásticos, suas bolas de resina e de cerâmica, suas goivas e buris, tintas e placas de metal, Silvia Mecozzi foi então tecendo um crochê visual cheio de matérias, protuberâncias, reentrâncias. As decisões passaram a ser tomadas na vontade construtiva, na pulsão que leva à exploração da matéria, sua forma, o contraste de brancos e negros, as texturas, as transparências e opacidades, as ambigüidades.
Nessas ações plenas de fisicalidade, a artista foi se libertando do teor auto-biográfico, da necessidade de reconstruir histórias e de oferecer a elas verdadeiros rituais de ruínas. Silvia Mecozzi foi se desapegando, foi deixando outras formas brotarem e contarem suas próprias histórias.
Nessa ação, a artista diminui-se. Liberta-se do tecido intricado de imagens pré-existentes da memória para abarcar as fibras, texturas e formas inéditas do mundo. Nessa diminuição, ela se ampliou.
II. CORPO, PAISAGEM, TATUAGEM
“Em um momento preciso, o momento justamente em que o corpo dividido grita ego num impulso geral, eu passo para o exterior, posso tirar o resto do corpo, tirar os pedaços que ficaram dentro, sim, os pedaços esparsos subitamente escurecidos pela virada brutal do iceberg... Existe um lugar quase pontual que o corpo inteiro assinala na experiência espacial da passagem... Desde meu quase naufrágio costumo chamar de alma esse lugar. A alma mora no ponto onde o eu se decide” (Michel Serres; Os Cinco Sentidos)
Silvia Mecozzi explica que suas obras surgem de decisões formais. O escuro e o claro, o que está côncavo e o que está convexo, o que é liso e o que quer ser peludo.
Nessa pulsação curiosa e livre que mobiliza suas construções, a artista corta, lixa, risca, verga seus materiais com força masculina. Tudo, no entanto, parece se entregar à criação de corpos que ficam no limiar de paisagens femininas. Há uma espécie de arquétipo erótico delineado nessas formas.
Matérias brutas passam por receitas alquímicas. Tornam-se operações de liberdade.
Olho para as obras e vejo esse limiar. Grandes superfícies peludas pedem o toque. Abóbadas de resina contêm tubinhos pretos que parecem cabelos. Caixas acrílicas estão recheadas de inscrições e ranhuras feitas com buril, tubos plásticos de diferentes espessuras, criando sensações de bichos, pêlos, espinhos, cobras. Bolas de cerâmica impecavelmente redondas alternam tonalidades brancas, pretas e cinzas com pequenas frases ecoando ao seu redor. “Despejo o desejo no azulejo” diz uma delas. São pequenas ilhas de palavras feitas para ver, sentir, pensar.
No corpo da obra de Silvia Mecozzi a carga auto-biográfica deu lugar a uma maneira absolutamente pessoal de construir imagens. Na estratégia mais solta utilizada para construir seu discurso, a artista passou a materializar caixas condensadas de potência sexual. Elas incorporam um erotismo encaixotado, que se dilui, aos poucos, com sua possível alegoria de paisagem – um confundir-se entre a forma pura e os desdobramentos narrativos que, na condição de humanos, tendemos a atribuir a todas as coisas.
À entrada da exposição uma esquina de pelos pretos me recebe. Esses pelos são duros, feitos de plástico. Eles machucam no toque. Confrontados, tocados, esfregados, no entanto, eles vão cedendo ao calor e à textura da mão. Vão amolecendo, tornando-se quase carícias. Novamente a alquimia desse corpo-paisagem-forma pura se faz sentir, universalizando suas potências e fazendo ecoar múltiplos sentidos.
A obra de Silvia Mecozzi se desembaraça dos limites das atribuições no tempo de sua própria existência. E ganha uma imensidão de sentidos que a transforma em forma-coringa.
Uma obra arredondada é uma abstração mas é também uma anêmona. E pode ser um fragmento do corpo feminino, a parte de um mapa da anatomia humana.
Abrindo mão da história pessoal e familiar, a artista nos abre para uma operação de ganhar espaços. Em sua obra o dentro ganha o fora e tudo se expande. É quando o corpo vira paisagem, as anêmonas são corpos de mulher e a virada do iceberg anuncia a existência possível de paisagens híbridas.
Pedaços de corpos se descortinam e viram contêineres de uma memória difusa do mundo, das espécies que nele habitam, do tempo e do espaço em que tudo era um só. As paisagens híbridas de Silvia Mecozzi são grudadas, feito tatuagens, nos múltiplos sentidos que a vida possui. São corpos-paisagens-construções em que tudo pode ser ou se tornar um. E assim a artista vai juntando materiais, texturas, formas. Vai juntando as peças que formam um curioso mundo.
silêncios da linguagem - a arte de silvia mecozzi e a psicanálise
Alessandra Parente
Ouriças , emitem um ruído mudo. Sem se intimidar, Silvia Mecozzi escuta essas cócegas ao pé do ouvido, e aceita o desafio de perseguir o tênue rumor. O barulho surdo parece gritar, embora a voz esteja sufocada. O apelo feito por essas reverberações é decifrado pela artista, que se poe a materializa-las, criando uma linguagem em cujas dimensões a palavra não se enquadra.
Ao acompanhar a trajetória da artista, nota-se que ao longo dos anos seus trabalhos ganham densidade. Ainda que suas questões mantenham certa coerência, com o passar do tempo sua sensibilidade em adentrar refúgios inefáveis da memória se tornou extremamente apurada. A serie identidades ameaçadas (1996) e versos plásticos (1998) prenunciam o caminho de obras posteriores. Embora ja aludam com maestria ao cerne de suas questões, ainda se percebe um comprometimento com a superfície (das suas lembranças).
Não contente com essa area mais visível nem com as bordas que a tangenciam, a artista alcança, em ouriças ( 2005) , silenciosas, fase que começa em 2004 e segue fazendo até hoje, e olódòdó (2009), inscrições originárias da memória. Esses vestígios não são acessados pela mente, mas captados pelos sentidos. A coragem de apostar nas sensações como fonte de saber a faz desbravar caminhos e encontrar esses rastros, incisões, sulcos profundos das reminiscências.
Sem perder o fôlego, a artista persegue as filigranas da memória. Sua insistência em lhes atribuir textura, musicalidade, coloração, segue em direção oposta ao burburinho do mundo atual. Quanto mais a linguagem silenciosa desses sentimentos abissais ganha consistência, mais a artista se afasta da prolixa superfície contemporânea.
Sua arte expande na medida em que mergulha nos precipícios da intimidade.
Em suma, seu trabalho solitário pede uma involução – o gesto de farejar e rastrear essas marcas primitivas nas entranhas do corpo.
Hoje essa é uma exigência drástica: fugir da imagem, dos discursos, da fama fácil. Contudo, insignias nos ossos, epidermes cravadas, o calor das células, o murmurar do sangue clamam pelos seus gestos e a artista não se desvia de sua tarefa.
Rende-se a ela com persistência.
Instrumentos refinados para a escavação não se limitam à visualidade do tato. Alem de sua visão tátil de suas obras , a audição, assim como o olfato precisam estar vigilantes. Um suspiro, a respiração ofegante, pequenas gotas de sour, o eriçamento dos pelos da pele, a visão embaralhada, ou a tensão dos músculos indicam se a trilha está correta. Suscetível a esses sinais, a artista fissura o acrílico com uma quase violência. Já os sulcos do metal exigem delicadeza ao serem percorridos. O buril pede presteza em diferentes superficies. A revolta dos arames precisa ser domada com cuidado. A distinção do colorido de cada pequeno conjunto de arames deve ser feia com acuidade. Os materiais capazes de encarnar esses feixes da carne suplicam escolhas, novas pesquisas.
Essa perfuração da superfície até camadas mais densas e recônditas tem resultado curioso: as marcas indeléveis e indescritíveis desabrocham. Brotam vigorosos espinhos, densas ranhuras, camadas translúcidas que não forma e colorido a silenciosas e ouriças . Arriscando-se em novas técnicas, a artista cria instalação olódòdó na qual é possível penetrar nas vísceras da alma. A musicalidade, a vibração de seu vermelho e seus movimentos languidos e pulsantes transvestem de modo ainda mais intenso as seivas do corpo. A palavra echinodiscus usada como titulo de uma de suas series, demonstra que essas regiões são hibridas – nem vivas, nem mortas, agem como parasitas ou fungos
Encarar essas marcas mnemónicas não significa assumir tom nostálgico. Ao contrario, esses lugares originários têm, muitas vezes, sabor amargo, aspecto tenso, quase melancólico. Sugam. Silvia Mecozzi embarca para os confins dessas veredas, sem se perder.
Extrai volumes e formas desses seios esmagados e, como uma parteira concede luz, vibração, colorido – vida – a esses rasgos.
Todo traço inscrito na carne, seja ele tênue, seja ele profundo, tem seus direitos. Para Freud, estímulos sensórios cravam marcas mnêmicas no aparelho psíquico infantile e essas reivindicam expressão ao longo da vida. Logo, há uma exigência de trabalho psíquico para que primeiras as impressões sensoriais sejam traduzidas.
Esses traços mnêmicos protestam pela construção de uma plasticidade ou pela articulação de palavras que lhes dêem forma.
Fazem isso quando se estabelece algum elo entre marcas do passado e eventos do presente. Assim , qualquer espécie de materialidade sonora, plástica, tátil, ressucita impressões de passado e estas, por sua vez, sorvem qualquer novidade em direção a caminhos trilhados, percorridos.
É dessas marcas pré-históricas da vida animica que nascem as obras da artista. É certo que a psicanálise tem muito que aprender com a arte, mas esta também pode colher bons frutos do saber psicanalítico. Em relação a silvia Mecozzi, a psicanálise assume uma divida; a sensualidade e as fantasias originarias jamais foram alcançadas seja pela teoria, seja pelo seu instrumento central, a interpretação pela palavra. Sua natureza é tátil, olfativa e auditiva, e experiências como as que oferecem essas obras nos colocam em contato direto com a linguagem inerente a esses lugares mais prosaicos.
agressão e delicadeza
Eder Chiodetto
A ponta seca agride uma superfície, cria um sulco, uma marca, uma cicatriz. no embate entre a força e o vigor do movimento e a resistência da matéria, a artista plástica paulistana Silvia Mecozzi vem realizando nos últimos 15 anos, desde sua primeira exposição, uma coleção de obras que materializam em metáforas visuais e táteis sua subjetividade, seus anseios, temores e desejos.
A tinta, que irriga e transforma simbolicamente os sulcos criados no cobre, no acrílico, na madeira, é material absolutamente familiar. Silvia Mecozzi é neta e filha de pintores. quando Vicente Mecozzi, seu pai, morreu, a artista tinha apenas oito anos. idade suficiente para que em sua memória ficasse impregnado o cheiro, as cores, as formas e, sobretudo, a capa- cidade de se conseguir alcançar um estado de transcendência por meio das tintas e da arte.
A jovem estudante de artes soube escolher bem seus pares. estudou com Carlos Fajardo e Sérgio Fingermann. foi assistente de Luis Paulo Baravelli. soube também esperar que as inquietudes do espírito se apaziguassem. sem pressa, com a serenidade que lhe é peculiar, realizou sua primeira individual em 1994, aos 38 anos. o tempo era de colheita e essa sua primeira mostra organizada na pinacoteca do estado de são paulo recebeu o prêmio revelação de pintura da associação paulista de críticos de arte.
Serenidade, no entanto, está longe de significar comodismo assim como está distante da falsa ideia de alguém que nega seus dilemas, seus demônios internos. pelo contrário, a obra de Silvia Mecozzi, nos últimos anos, tem se pautado por uma série de auto-referências que tocam em questões bastante espinhosas e particulares de sua vida pessoal, de sua personalidade marcante.
Ao buscar dentro de si, mas que em sua biografia, tais questionamentos, sua obra teve seu repertório de significados ampliado. seus trabalhos, alguns extremamente originais e surpreendentes pelo uso e mistura de materiais, ecoam os desvãos do homem contemporâneo e os labirintos da afetividade.
suas obras da série “ouriças”, por exemplo, são campos que instigam na mesma intensidade os olhos e o tato. elas são formadas por grandes planos compostos por pedaços de fios . são obras “peludas”, uma espécie de vegetação rasteira.
Essas inesperadas formas escultóricas se redesenham a cada novo ângulo de visão. pedem a contemplação contida, repelem olhares velozes, seduzem mãos, corpos. “me incomoda muito a forma como aceleramos nossos sentidos hoje em dia. parece que estamos perdendo
o tempo da contemplação. tudo é rápido, um clic, um botão... esse apelo pela eficiência e velocidade tende a tirar nosso poder de observação das coisas. gosto de pensar que algumas de minhas obras consigam impelir as pessoas a um outro tempo. menos racional, mais sensorial. é preciso desacelerar”, diz a artista enquanto constrói um mosaico com suas gravuras no piso de seu ateliê na vila madalena, em são paulo.
Suas criações que ao longo de sua carreira orbitaram em sua maioria entre as gamas de preto, branco e cinza, recentemente foram inundadas pelo vermelho. se auto questionando a artista rememora um momento especialmente delicado, mas que se tornou uma espécie de turning point em seu roteiro pessoal e, ao que tudo indica, em sua criação também.
Uma cirurgia bastante complexa levou-a a realizar previamente uma bateria de exames. num dado momento seu médico, através de uma micro-câmera examinava seu cérebro. “prefiro não ver”, disse Mecozzi. mas a curiosidade foi mais forte. “abri apenas um dos olhos, sondei a imagem... fui jogada pra dentro da imagem pela poesia estética daquelas microestruturas nervosas com suas conexões em formas surpreendentes, vermelhas, intensas e delicadas ao mesmo tempo. percebi uma nova metáfora dessas formas com o meu trabalho, com minhas incisões nos materiais, os desenhos erráticos nas chapas das gravuras. naquele dia saí do exame com a sensação de ter descoberto um novo mundo. provavelmente isso me ajudou no tratamento e na cura”, comenta.
Novos caminhos. num canto do ateliê repousa uma chapa acrílica, com centenas de incisões provocadas pela ação da artista, que posteriormente absorveram uma tinta vermelho sanguíneo. de novo o aporte orgânico e a dor latente que convida ao toque, ao afeto, ao cuidado. uma nova série de gravuras ganhou formas arredondadas, avermelhadas. reunidas em mosaico, como a artista gosta de observá-las, remetem a um sistema planetário, que também faz emergir uma sensualidade da forma, da cor. “não dá para negar que passa a existir um viés mais feminino. a experiência de ser mãe, esposa, de ter 53 anos, é inevitável que tudo isso vá criando novas fronteiras no trabalho”, diz.
Entre o orgânico, as formas aparentemente abstratas que ganham significados mutantes, o aporte de sua subjetividade e o exercício diário da prática em seu atelier, Mecozzi segue construindo meticulosamente um mundo de sutilezas pelo qual podemos observar a vida por um ponto de vista mais onírico, menos demarcado pela racionalidade da crença da vida virtual, on line, objetiva.
Como escreveu a crítica de arte Angélica de Moraes, “Silvia Mecozzi propõe um olhar amoroso que não se encerra na posse fugaz. busca a permanência possível dos encontros, vistos como conjugação de epidermes tentando atingir dimensões impalpáveis, amplificadoras de nosso estar no mundo”. conjugar epidermes, promover encontros, afetos. arte em estado bruto para falar de certas delicadezas do ser.
visão da terra: aqui, agora e depois
Angélica de Moraes
Em que medida a percepção da crise ambiental gerada pelo antropoceno conseguirá atingir um debate amplo capaz de oxigenar a sociedade e fazê-la pressionar por mudanças de rumos e valores? Uma das respostas mais eficazes na tarefa de confrontar modelos de ação e dar visibilidade a essa bifurcação de caminhos está sendo mapeada pela Cultura e pelas expressões artísticas em vários meios, convergindo para temáticas antes na esfera quase exclusiva da Antropologia. Silvia Mecozzi dá uma potente contribuição a esse debate atualíssimo ao fundamentar sua exposição (na galeria Arteformatto) na visão de mundo dos índios Yanomami e na cultura Iorubá. Ou seja, buscando água das nascentes.
Vale lembrar que Mecozzi vem de sólida trajetória na exigente técnica da gravura em metal, que ela expandiu com sucesso para a abordagem gráfica de diversos materiais até atingir instalações de grande formato. Como fez em 2013, no inesquecível chão de mármore em que inscreveu sulcos na epiderme de pedra para criar linhas de mãos, destinos a serem percorridos pelo público de pés descalços, metáfora dos trajetos acidentados escalados pelos afetos.
Alguns fragmentos dessa obra (‘Branco de Si”) retornam agora em “Deserto das P... Almas”, apropriados para serem vistos sob outro diapasão: em uma parede marrom. Sinalizam, assim, outra metáfora: a posse da terra. A mão espalmada estabelecendo domínio e abrangência. Individualizando, recortando e fragmentando o que era coletivo. Essa posse, suas características e consequências, se desdobram para formar o conjunto em exibição.
A palma da mão em seus sulcos e relevos mais expressivos também nos remete a percursos de rios, trajetos extensos de terra seca e poeira onde já foi água e peixe. Nos leva a terreno instável e frágil que sustenta essa enormidade chamada vida. É a terra, o solo cultivado ou garimpado em extensões e intensidades que podem alimentar ou destruir e esgotar. A escolha de um ou outro rumo é decisiva para nosso horizonte de tempo como espécie.
Mecozzi nos leva a pensar nas palavras de Davi Kopenawa no livro “A Queda do Céu” ao descrever os agentes da destruição de seu território ancestral. Ele denomina de “comedores de terra” e “tatus gigantes” os homens e as máquinas do garimpo que sugam o fundo dos rios e esboroam suas margens. Como sabemos, a escavação mecanizada acelera e multiplica os danos ambientais. Modificam de modo radical o ambiente natural. De modo irreversível, aliás, se medirmos pela escala de tempo humana.
O alastrar dessa corrida do ouro por territórios indígenas protegidos por lei faz Serra Pelada parecer mero ensaio do caos. Imagens que espantaram o mundo inteiro pela violência da cobiça e da miséria humanas espelham fatos, porém, que agora não têm a sequência e espantosa amplificação documentadas e divulgadas na mídia na escala de importância que significam. Seja porque ocorrem em locais de difícil acesso, seja porque as bigtechs e as corporações de mídia, de alguma forma, por ação ou omissão, não as divulgam ou analisam na mesma proporção da sua importância para o aqui, o agora e o depois.
A cosmogonia Yanomami situa nos metais sob a terra os alicerces e pilares que sustentam o céu. A queda do céu, ou seja, a destruição da Terra como ambiente propício à Vida em sua imensa diversidade de seres é o que a ciência nomeia como crise climática ou aquecimento global. Os “brancos” (como nos denominam os índios em contraste aos “parentes”, seus iguais) não parecem ser capazes, como os Yanomami, de entender a importância vital de preservar a herança ancestral da floresta e os recursos naturais.
É exatamente nessa esquina da dita civilização (ou do modelo econômico que supõe sustentá-la) que age a Cultura e, em especial, as Artes Visuais. Há artistas que percebem e aplicam a potência de significados da imagem como veículo de ideias para muito além da ilustração ou do panfleto. Mecozzi vai direto ao ponto da metáfora sem esbarrar em simplificações que roubam da Arte o que nela há de mais interessante: a ambiguidade, pedra de toque para ampliar percepções.
As obras desta exposição mostram um Brasil contaminado pelo ouro do garimpo, coberto de carvão, ossos e sangue. Há vermelhos intensos que também remetem aos incêndios das matas e florestas, outro motor da distopia. A linguagem escolhida não deriva, porém, de obviedades crispadas pelo repertório figurativo expressionista. As coisas mostram sua violência por elas mesmas. Não há representação e sim cartografias A composição estabelece uma ordem e um método que predispõe a análise, como lâmina no microscópio. Silvia Mecozzi sabe que o caos em que estamos mergulhados já não admite espanto mas ainda exige ser demonstrado do modo mais eficaz para penetrar corações e mentes: com boa e verdadeira Arte.