branco de si
Yuri Fomin Quevedo
Agosto de 2013
Conta-se que Paolo Ucello, no trezentos renascentista, ao ser convidado por sua mulher a ir deitar-se com ela, exclamou Oh que coisa doce essa perspectiva!, e, nessa frase, com o engenho da mente, organizou seu cotidiano como fazia em suas composições: a perspectiva não só como o tempo ideal, onde o desenrolar das ações humanas lhe conferia visão acurada sobre um futuro promissor, mas também como espaço que abriga o gesto, lugar da narrativa histórica.
O trabalho de Silvia Mecozzi registra as palmas das mãos e depois esculpe suas linhas no mármore, criando relevos. Primeiramente são fotos, em preto e branco, que, ampliadas, mostram o tecido do corpo de forma franca e devassada. Depois esse tecido é depositado sobre placas de pedra por meio de um cinzel elétrico. A artista grava as linhas das mãos e reconstitui no branco as qualidades de um corpo; são planícies e depressões suaves impressas na plasticidade do mármore. A pedra recebe bem esses sulcos, mostrando-os como parte de si. Contido nessa ação, está o olhar de quem avista a terra depois de ter estudado o mapa. Conhecendo aquelas linhas bidimensionais, se aventura na construção dos vales e platôs reais, enfrentando o material de sua pele e o mármore.
Nesse embate, revelam-se as manchas e veios constituintes da pedra como na descrição de uma paisagem. Restritas ao quadrado, deixam de ser mãos e passam a aridez de uma terra não explorada. O branco e o cinza do mármore, seu brilho, e os sulcos que o trabalho fez nele, são agora matéria etérea e sensual, provocando-nos a perguntar sobre a luz que incide sobre eles e não mais sobre como são feitos. Esses elementos guardam em si seu próprio segredo, e a relação entre eles parece ocultar uma história de relações que se expressa no relevo de um deserto.
Mas são palmas, e o espaço que se cria é o do próprio corpo. São marcas distintivas que, neste trabalho, carregam a crença de que nos podem revelar o futuro e dizer sobre quem somos. Diferente dos esquemas renascentistas, a imagem que se obtém não pode ser mensurada, esquadrinhada e revelada, ela encerra seu próprio segredo no gesto que a faz. Esculpir, criando com as mãos a paisagem do corpo - e também a do gesto - nos faz ver um espaço branco e infinito, não mais palco do desenvolvimento histórico. O corpo se faz ali, topografia de onde se pode avistar seu território íntimo. Enquanto o gesto que constitui o trabalho se esvanece na beleza do material, surge o deserto das palmas. Espaço do afeto, não da história. Fronteira daquilo que cada corpo sabe de si mesmo.