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ouriças e silenciosas

ouriças
ouriças 

Angélica de Moraes

Maio de 2005

Não há possibilidade de alguém apenas olhar a instalação que preside esta mostra individual de Silvia Mecozzi. As superfícies, embora eriçadas de pontas, são macias e chamam o toque, pedem o contato com suas epidermes peludas. Antes de visuais, elas são táteis. É pelo tato que elas nos remetem à dimensão metafórica.

 

Ao entrar nesse corredor de paredes convergentes, que vão se estreitando na medida em que penetramos nele, sentimos escorregar nas entranhas de um corpo. Há aí um canal desejante. Ou, ainda, há o espaço entre dois corpos que se atraem e seduzem. A sedução se irradia para a visualidade e esta novamente para o toque, como no jogo amoroso.

 

Vulneráveis, acessíveis, essas superfícies se organizam em oposições de preto e branco. Alteridades. Masculino e feminino. O outro como vértice e alvo de quem deseja. Linhas paralelas que se aproximam mas que jamais estarão completamente unidas. A morfologia do trabalho não poderia ser mais nítida para a demonstração dos propósitos da artista. 

 

Os tubos/fios de plástico têm seu caráter industrial e asséptico totalmente subvertidos e reconfigurados em eloqüentes índices do orgânico. Assumem outra natureza. São agora pelos agigantados, vistos por lente de aumento que desvenda intimidades. Estão sob observação estreita, próxima, quase sufocante, na busca da mínima distância que chamamos desejo. 

 

Trata-se de descobrir e vivenciar o que, afinal, anima e justifica essas anatomias. Há aí Física e Biologia misturadas. Há arrepio de corrente elétrica entre dois pólos opostos, que se descobrem complementares. É algo quase à flor da pele. É o músculo e a enervação que, na base de cada um desses fios, anuncia e configura a ação ou o repouso. Fluxo e refluxo. Ciclo da vida.

 

A sutileza da vivência sensorial proposta por Silvia Mecozzi, o discurso subjacente a seu trabalho, está a anos-luz da cultura do excesso do gozo (1), que tão bem aponta o psicanalista francês Charles Melman. Não há aqui banalização da sensualidade nem apagamento do desejo pela apropriação consumista dele. Há, sim, uma cuidadosa observação que preserva e busca ampliar a percepção ontológica, a dimensão essencial do assunto. 

 

Ao invés do que Melman denomina de “nova economia psíquica”, organizada pela exibição do prazer e do sexo como simples atividade corporal ou performance atlética, a artista tenta recuperar a transcendência do encontro amoroso. 

 

Para além dos conteúdos poéticos, esta exposição evidencia a vocação gráfica da autora. É isto que ressoa tanto nos traços/fios/pelos da instalação de entrada quanto na série de trabalhos perfilados na parede seguinte. Sulcados no acrílico transparente com o mesmo gesto que costuma animar a incisão de imagens nas matrizes de cobre da gravura em metal, esses trabalhos costuram os dois momentos da exposição. Reúnem o grafismo tornado tridimensional e o grafismo tornado transparência, ambos expansões da tradição planar da gravura.

 

Esta mostra reúne, assim, tanto o trabalho que pede um deslocamento diante e através dele – ocasião em que as linhas se alongam, agrupam e expandem, armando-se e desarmando-se em configurações que correspondem ao movimento do expectador diante delas – como na série de trabalhos menores, retangulares e fixados à parede, em que o deslocamento fica quase resumido ao foco do olho, à dimensão das diversas profundidades perceptíveis de uma determinada janela ou moldura, que recorta e determina a separação entre realidade e discurso artístico.

 

Na técnica da ponta seca, com desenhos feitos de ranhuras e sulcos, a série de trabalhos se beneficia do meio escolhido pela artista, que permite explicitar e arejar no espaço, na sobreposição de planos, o que na gravura tradicional é soma de transparências virtuais reunidas em uma só superfície. Ela liberta o traço das densas opacidades da gravura e o lança no ar. Justapõe grafismos para atingir outra forma de percebê-los.  Aplica aí a mesma operação, de delicada desconstrução analítica, utilizada para criar a instalação de linhas mutáveis, que incorpora e interage com  nosso movimento. 

 

Silvia Mecozzi propõe um olhar amoroso que não se encerra na posse fugaz. Busca a permanência possível dos encontros, vistos como conjugação de epidermes tentando atingir dimensões impalpáveis, amplificadoras de nosso estar no mundo.

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