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visão da terra: aqui, agora e depois

osso canibal
visão da terra: aqui, agora e depois

Angélica de Moraes
Março de 2024

Em que medida a percepção da crise ambiental gerada pelo antropoceno conseguirá atingir um debate amplo capaz de oxigenar a sociedade e fazê-la pressionar por mudanças de rumos e valores? Uma das respostas mais eficazes na tarefa de confrontar modelos de ação e dar visibilidade a essa bifurcação de caminhos está sendo mapeada pela Cultura e pelas expressões artísticas em vários meios, convergindo para temáticas antes na esfera quase exclusiva da Antropologia. Silvia Mecozzi dá uma potente contribuição a esse debate atualíssimo ao fundamentar sua exposição (na galeria Arteformatto) na visão de mundo dos índios Yanomami e na cultura Iorubá. Ou seja, buscando água das nascentes. 

Vale lembrar que Mecozzi vem de sólida trajetória na exigente técnica da gravura em metal, que ela expandiu com sucesso para a abordagem gráfica de diversos materiais até atingir instalações de grande formato. Como fez em 2013, no inesquecível chão de mármore em que inscreveu sulcos na epiderme de pedra para criar linhas de mãos, destinos a serem percorridos pelo público de pés descalços, metáfora dos trajetos acidentados escalados pelos afetos.

Alguns fragmentos dessa obra (‘Branco de Si”) retornam agora em “Deserto das P... Almas”, apropriados para serem vistos sob outro diapasão: em uma parede marrom. Sinalizam, assim, outra metáfora: a posse da terra. A mão espalmada estabelecendo domínio e abrangência. Individualizando, recortando e fragmentando o que era coletivo. Essa posse, suas características e consequências, se desdobram para formar o conjunto em exibição.

 A palma da mão em seus sulcos e relevos mais expressivos também nos remete a percursos de rios, trajetos extensos de terra seca e poeira onde já foi água e peixe. Nos leva a terreno instável e frágil que sustenta essa enormidade chamada vida. É a terra, o solo cultivado ou garimpado em extensões e intensidades que podem alimentar ou destruir e esgotar. A escolha de um ou outro rumo é decisiva para nosso horizonte de tempo como espécie.

Mecozzi nos leva a pensar nas palavras de Davi Kopenawa no livro “A Queda do Céu” ao descrever os agentes da destruição de seu território ancestral. Ele denomina de “comedores de terra” e “tatus gigantes” os homens e as máquinas do garimpo que sugam o fundo dos rios e esboroam suas margens. Como sabemos, a escavação mecanizada acelera e multiplica os danos ambientais. Modificam de modo radical o ambiente natural. De modo irreversível, aliás, se medirmos pela escala de tempo humana.

O alastrar dessa corrida do ouro por territórios indígenas protegidos por lei faz Serra Pelada parecer mero ensaio do caos. Imagens que espantaram o mundo inteiro pela violência da cobiça e da miséria humanas espelham fatos, porém, que agora não têm a sequência e espantosa amplificação documentadas e divulgadas na mídia na escala de importância que significam. Seja porque ocorrem em locais de difícil acesso, seja porque as bigtechs e as corporações de mídia, de alguma forma, por ação ou omissão, não as divulgam ou analisam na mesma proporção da sua importância para o aqui, o agora e o depois. 

A cosmogonia Yanomami situa nos metais sob a terra os alicerces e pilares que sustentam o céu. A queda do céu, ou seja, a destruição da Terra como ambiente propício à Vida em sua imensa diversidade de seres é o que a ciência nomeia como crise climática ou aquecimento global. Os “brancos” (como nos denominam os índios em contraste aos “parentes”, seus iguais) não parecem ser capazes, como os Yanomami, de entender a importância vital de preservar a herança ancestral da floresta e os recursos naturais. 

É exatamente nessa esquina da dita civilização (ou do modelo econômico que supõe sustentá-la) que age a Cultura e, em especial, as Artes Visuais. Há artistas que percebem e aplicam a potência de significados da imagem como veículo de ideias para muito além da ilustração ou do panfleto. Mecozzi vai direto ao ponto da metáfora sem esbarrar em simplificações que roubam da Arte o que nela há de mais interessante: a ambiguidade, pedra de toque para ampliar percepções.

As obras desta exposição mostram um Brasil contaminado pelo ouro do garimpo, coberto de carvão, ossos e sangue. Há vermelhos intensos que também remetem aos incêndios das matas e florestas, outro motor da distopia. A linguagem escolhida não deriva, porém, de obviedades crispadas pelo repertório figurativo expressionista. As coisas mostram sua violência por elas mesmas. Não há representação e sim cartografias A composição estabelece uma ordem e um método que predispõe a análise, como lâmina no microscópio. Silvia Mecozzi sabe que o caos em que estamos mergulhados já não admite espanto mas ainda exige ser demonstrado do modo mais eficaz para penetrar corações e mentes: com boa e verdadeira Arte.  

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